Texto primoroso de Sérgio Fausto, sobre a liderança que nos falta. No Estadão o texto está aqui. Como muitos não conseguem abrir, copiei abaixo.
QUALIDADES DE LIDERANÇA QUE O MOMENTO EXIGE
QUALIDADES DE LIDERANÇA QUE O MOMENTO EXIGE
Tempos de crise servem
de campo de teste para as lideranças.
Em todo o mundo, os governantes estão diante de um enorme e
complexo desafio. Comandam uma batalha em duas frentes, sanitária e
socioeconômica, em terreno pouco conhecido. Jamais a humanidade viveu uma
pandemia num mundo tão interconectado e exposto a rumores e teorias da
conspiração, tampouco uma crise econômica deflagrada por uma emergência
sanitária que imponha tamanha restrição à produção e ao consumo. Como se fosse
pouco, o inimigo é invisível e, por ora, apenas pode ser contido, não
derrotado. A guerra será longa, com muitas fases e batalhas.
O desafio consiste em tomar decisões que atendam da melhor maneira
possível ao duplo objetivo, nesta ordem, de reduzir as mortes e a contração
econômica produzidas pela disseminação do novo coronavírus. Trata-se não apenas
de tomar decisões e reavaliá-las, à luz dos dados sobre o desenrolar nas duas
frentes da batalha, mas também de obter a adesão de empresas, famílias e
pessoas para que as decisões tomadas possam surtir o efeito pretendido. Para
isso é fundamental que a sociedade esteja convencida da correção das ações
governamentais, ainda que, em última instância, o Estado possa valer-se de
medidas coercitivas para implantá-las.
Como há vários e conflituosos interesses convivendo em sociedade,
a liderança política, em especial nos países democráticos, precisa produzir
convergência (ela não surgirá espontaneamente, ao contrário) em torno de uma
estratégia de combate que mobilize recursos para proteger os setores sociais
mais vulneráveis e os elos mais débeis das cadeias de produção e distribuição
de bens e serviços básicos. Deve apelar a valores que unifiquem momentaneamente
a sociedade e reforcem mecanismos de cooperação e solidariedade social. Sendo o
inimigo um patógeno, cabe à liderança política basear suas decisões no melhor
conhecimento das ciências médicas sobre a doença e suas formas de contágio. Mas
como a pandemia tem efeitos e implicações socioeconômicas amplos, é preciso
mobilizar várias áreas do conhecimento. À liderança política incumbe tanto
promover o esforço interdisciplinar para dar base sólida ao processo decisório
quanto traduzir em linguagem acessível ao cidadão comum as razões das decisões
tomadas. Para não falar no dever mínimo de não propagar fake news.
A emergência sanitária e socioeconômica exige uma combinação de
qualidades que não se encontra com frequência. Requer que políticos se elevem à
condição de estadistas, quase da noite para o dia. Tem melhores condições de se
erguer à altura do momento quem reúne um conjunto de qualidades: capacidade de
acompanhar raciocínios científicos e compreensão de problemas complexos (para
os quais há sempre uma resposta simples que está errada); inteligência
estratégica para determinar ações congruentes no tempo e no espaço; ampla
habilidade de articulação política e interlocução social, para aumentar a
eficácia das políticas públicas e corrigi-las ou ajustá-las sem alvoroço e
intranquilidade quando necessário; e, por último, mas não menos importante,
empatia pelas diversas formas de sofrimento físico e psíquico por que estão
passando as pessoas, em especial as mais vulneráveis.
Agora e no futuro previsível, a estatura das lideranças políticas
será medida pela demonstração concreta que tenham dado (ou não) dessas
qualidades em decisões tomadas no calor da hora diante de dilemas críticos e
inter-relacionados. Por exemplo: quando e sob que condições transitar de uma a
outra abordagem da emergência sanitária (seja para radicalizar, seja para
amenizar as medidas restritivas a atividades econômicas e à circulação de
pessoas)? Até onde expandir o gasto e a dívida pública para suprir a renda
perdida por famílias e empresas?
Além da eficácia das decisões tomadas, as lideranças políticas
serão avaliadas pelos valores que despertarem na sociedade. Seria ingênuo
descartar a possibilidade de o nacionalismo xenófobo ou o individualismo
exacerbado saírem fortalecidos da crise atual. Mas existe uma boa chance de que
ao final prevaleça a revalorização da cooperação internacional e da
solidariedade social para enfrentar os grandes desafios coletivos da nossa
época (a pobreza, a desigualdade social, as mudanças climáticas e as
pandemias).
Não escrevi este artigo para apontar o que antes já era óbvio
ululante e agora se tornou dramaticamente claro: o Brasil está muito mal servido
na Presidência da República. Seria patético, não fosse trágico, que um homem
tão desprovido das qualidades para liderar o Brasil, em particular neste
momento, esteja hoje ocupando o máximo cargo político do País.
Felizmente o Brasil, com suas outras lideranças, suas
instituições, suas organizações da sociedade, sua gente, é bem maior e melhor
do que Bolsonaro. Não há mal que sempre dure. Agora se trata de conter o imenso
dano que ele pode causar. Em 2022, de evitar que a história se repita como
tragédia.
Sérgio Fausto é cientista político, diretor geral da Fundação FHC.
Liderança. (foto: blog.ipog.edu.br) |
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