quinta-feira, 28 de julho de 2022

LIXA GROSSA & CIA LTDA (60)

O texto de Eugênio Bucci é primoroso e está aqui.  Mas segue abaixo na íntegra, porque é imperdível. 

E A CANETA BIC?
 
Depois que tudo isso acabar – e uma hora ou outra isso tudo vai acabar, vai ter de acabar –, o que terá sido da imagem da velha caneta BIC? Ela, com seu plástico transparente sextavado, sua tampinha azul, quem é que vai resgatá-la do lixo da História? O uso insistente e ofensivo que o presidente da República vem fazendo da pobrezinha, existirá saída para tamanho enxovalho?
 
Que destino dilacerante foi sobrar para ela. A toda cerimônia oficial, essas que são emolduradas pelo mármore branco do Palácio do Planalto, com as cores do Brasão da República ao fundo, ou ao lado, ou acima, ou abaixo, lá vem o sujeito espalhafatoso e falastrão, arreganhos como se fossem sorrisos, sacando uma BIC do bolso para assinar isto e mais aquilo, diante de todo mundo. Tem sido assim com tanta frequência, com tanta desfaçatez, que a gente morre de dó, de constrangimento e de vergonha.
 
Incrível que ninguém tenha protestado contra o sequestro. Lá está ela, indefesa, no noticiário de todo dia, emprestando sua tinta inocente para atos contra as florestas, contra os povos originários, contra a paz, todo tipo de atrocidade. Que tristeza. Logo ela, que não tinha nada que ver com isso. Justo ela: não é justo.
 
Deveríamos pensar mais sobre o assunto. Pouca coisa diz tanto sobre o esgoto brasileiro como a usurpação serial da velha esferográfica. Por que o chefe de Estado resolveu tomá-la por prolongamento fálico? O que ia em sua cabeça, onde nada vai de bom? A resposta é simples, embora desoladora.
 
A BIC é uma ferramenta perfeitamente fungível. É a pena desprovida de individualidade, mais ou menos como um hambúrguer de fast food ou um pedaço de giz. Ninguém herda uma BIC do pai. Ninguém guarda uma BIC de lembrança, pois não há nada nela que a diferencie de qualquer outra igual a ela. A BIC é como botijão de gás. Um casco de cerveja. Se três pessoas misturam suas BICs numa reunião, nenhuma delas saberá direito qual era a sua.
 
O mais intrigante é que, graças à sua fungibilidade, sua impessoalidade extrema, ela fez muito pela escola. Ajudou a alfabetizar pessoas, tornou a escrita, de algum modo, um pouco mais acessível: a promoção das crianças que aprendiam a escrever a lápis e, depois, podiam passar para a caneta ficou mais em conta. E como era solene desenhar as letras a tinta, mesmo que a tinta fosse de uma BIC. Como era bom ir com a mesma BIC até o fim da carga. Quando ela falhava, bastava aproximar a esfera de uma chama de palito de fósforo, com cuidado para que a ponta não derretesse. Dava certo.
 
Surgiram marcas de imitação. Ruins. Houve, também, um tempo em que lançaram inovações de alto luxo, como a BIC Clic, mas nada superou a original. A BIC era boa porque era de todos. Pobres e ricos escreviam com ela. Se havia um objeto que atravessava as classes sociais sem incomodar nenhuma delas, esse objeto era a BIC. Padres usavam BICs. Presidiários. Advogados. Prostitutas. Adolescentes. Até analfabetos. Usava-se o tubinho da BIC para traqueostomia e salvar vidas. Usava-se o mesmo tubinho para cuspir bolinhas de papel mastigado nos colegas de classe. A BIC era democrática – isso antes de a democracia entrar em implosão de dentro para fora.
 
Então, veio este tipo aí – este mesmo em quem você pensou, este que aí está, este aí. Por que ele escolheu a BIC para Cristo? (Voltemos à pergunta, que ficou esquecida lá atrás.)
 
Não, não foi pelo que ela tinha de barato e de bom, mas pelo que ela tinha de barateado e de vil. Ele a escolheu para mostrar que nunca, jamais, em nenhum momento, nenhum dia, nenhuma tarde, nunca mesmo, a afeição lhe passou pela caligrafia. Ele não teve uma superstição com canetas. Nem mesmo simpatia ele teve, tem ou terá. Ele não sabe o que é isso. Nem saberá. Outros podem gostar de sentir a pena da tinteiro deslizando sobre a rugosidade do craft ou do canson. Ele, não. Outros podem achar que autografar um livro com aquela mesma ponta porosa vai dar sorte. Ele não (vai sem vírgula). Outros podem pressentir no dorso de uma roller antiga as digitais ainda quentes de um escriba que já se foi. Ele não.
 
Sempre assim: ele não, ele não, ele não. Para ele, a escrita é vazia de simbólico e de espírito – e a BIC é uma forma de declarar que a caneta vale menos que uma arma de fogo. Em se tratando de armamentos, o tal deve distinguir modelos, deve ter preferências e até estimações; deve saber a diferença entre fuzil, cartucheira, carabina, rifle e espingarda. Quanto às canetas, para ele, são todas indistintas: tudo a mesma porcaria, todas BICs, todas genéricas. Ele assina os decretos como quem desfere um tapa na cara de alguém que preze a cultura, pois vê a cultura como um entulho descartável, como uma caneta descartável. Ele escolheu a BIC para dizer que descarta a cultura.
 
Onde a BIC significava simplicidade, ele inventou a representação do desprezo, e com seu desprezo humilha as letras, o saber, a compaixão, a democracia e a criança que a gente é até hoje, quando pergunta: o que vai ser da nossa BIC?


sábado, 23 de julho de 2022

LANCES URBANOS (77)

Nasci na rua 25 de Março nº 171, prédio Alice, em 1963. Era atravessar a rua Hércules Florence e dar de cara com o majestoso parque Dom Pedro II ainda florido. Mas veio 1970, as obras do metrô começaram, os ônibus da praça Clóvis desceram para o parque, os jardins viraram terminal de ônibus e a região toda começou a degradar, já são 50 anos de abandono. Por isso vejo com interesse a proposta da prefeitura de parceria público-privada para recuperar essa área fundamental para a qualidade de vida paulistana. O plano propõe grandes modificações. Até o enorme quartel do Exército, em ruínas, seria recuperado (detalhes na matéria aqui). Só que (claro que tem um grande "só que") como coloquei na cartinha de hoje no Estadão impresso, trata-se de um grande projeto de médio e longo prazos. E o agora? E o necessário curto prazo, em um Centro Velho e Novo que está tão decadente, tão caído? Vou dizer, ele está tão abandonado, tão esvaziado, que fica até mais fácil intervir e ir construindo recuperação. Acredito piamente na capacidade humana de se unir, com diálogo, em parceria, e ir construindo coisas positivas. O Centro já teve algo assim nos anos 1990, com a operação Viva o Centro. É nessa linha, envolvendo dezenas de grandes (e pequenos) "players" que ainda estão no Centro, como OAB, CEF, TJ, Associação Comercial, braços culturais do BB e do Santander, UNESP, SESCs, Catedral da Sé, Bovespa (!), etc, etc. É a sociedade civil se mexer e orquestrar a recuperação, sem esquecer o social, que é o calcanhar de Aquiles de qualquer proposta para os Centros. Dá pra fazer. Eu acredito!
Estadão impresso de 23/07/22


quarta-feira, 13 de julho de 2022

LANCES URBANOS (76)

Fui avisado que uma edificação está sendo construída no Parque do Ibirapuera.  Incrédulo, fui conferir com os próprios olhos, afinal prédios pipocam pela cidade, mas dentro do Ibirapuera eu achava inconcebível. Que nada! Neste país nada mais surpreende, exceto a passividade com que admitimos tudo. Dois operários da obra e um vigia disseram que seria uma "academia". Claro que fiquei mal e mandei mensagem para a concessionária que desde 2020 administra o parque, a Urbia (aqui).  A assessoria de comunicação respondeu literalmente assim:  A construção não abrigará uma academia. No local, será construído um centro de apoio e fomento à prática esportiva no parque Ibirapuera. Os usuários terão acesso a mais banheiros e também à vestiários com chuveiros. Haverá lockers para armazenar pertences pessoais com segurança. Outra comodidade está a possibilidade de alugar ou adquirir acessórios para as variadas práticas esportivas como bolas, redes, raquetes e até skate e patins bem como equipamentos de proteção individual como capacetes. Uma nova estação de aluguel de bicicletas também está contemplada.  A previsão para a entrega do local é em 2023.  Aí perguntei qual autorização foi obtida para essa construção.  E a resposta literalmente foi: Estamos construindo em um local que já existia um prédio. Estamos seguindo o plano diretor.  Quando perguntei qual plano diretor, não tive resposta. O fato é que o Parque do Ibirapuera, criado há 68 anos, ficou pequeno para tamanho atual da cidade e sua demanda. Sendo tombado, nada se constrói ali sem muita análise e debate. Mesmo a construção do auditório, em 2005, foi alvo de muita polêmica (aqui) e olha que ele fazia parte do projeto original do Niemeyer, e houve compensações ambientais dentro do parque. Não ser uma "academia", como os boatos disseram, menos mal. Porém segue o inconformismo de ver um prédio surgir DENTRO do oásis verde nº 1 da cidade. Contramão total!

Prédio em construção no Parque do Ibirapuera (07/2022)



terça-feira, 5 de julho de 2022

LENDO.ORG (55)

Bienal do Livro se define em uma palavra: alegria. E é contagiante.  Não se vê pessoa com cara franzida, e olha que vai gente.  Fui na 2ª-feira cedo, pensando em encontrar vazia, mas que nada!  Já à chegada, 9h30, super-movimento, fiquei surpreso, depois entendi:  a prefeitura de São Paulo entregou mais de 90 mil vales-livros de R$ 60 para alunos e professores da rede pública (aqui).  Conta simples, um investimento de R$ 5,5 milhões. Então era um enxame de crianças e jovens carregando sacolinhas de livros...  Coisa rara, o carregar sacolinhas, para esses jovens das escola públicas, cujas famílias andam tão sofridas...  Eu, como sempre, me esbaldei.  Na verdade gastei pouco, porque umas 4 livrarias de desconto tinham livros muito interessantes por R$ 10 ou R$ 20. São as livrarias que trabalham com as pontas de estoque (ou fundo de catálogo) das editoras.  Nas Bienais elas esvaziam os depósitos, para alegria de milhares de leitores-garimpeiros, olhos e cotovelos à cata de bons títulos. As editoras se seguraram, mas no último fim de semana devem caprichar nos descontos. Só que encarar a muvuca vai ser coisa pra corajosos.  Dica: a Bienal oferece ônibus gratuito saindo da rua Voluntários da Pátria, atrás da estação Tietê do metrô. Usei, porque estacionamento a preço fixo de R$ 60 no Expo Center Norte é sacanagem!

Crianças comprando livros: pura alegria.