Com a lucidez de sempre, Bucci tenta entender essa indecência.
Na quinta-feira passada, numa aglomeração eleitoreira que promoveu no Rio
Grande do Norte (aqui), o presidente da República segurou um garotinho no colo e,
num gesto obsceno, abaixou-lhe a máscara. A cena estarrece pelo que tem de
imoral e abusivo. A mão do poder, com a displicência de um aceno, expõe um
inocente ao contágio. Nota-se um quê de pouco-caso. O chefe de Estado
parece
à vontade para desnudar o rosto infantil, sem sinal de respeito, sem a
menor
cerimônia; simplesmente puxa para baixo peça que cobre a boca e o nariz da
criança.
O menino, que, vestindo uma camisa amarela, saiu por aí para acabar num
abraço genocida do governante, representa o Brasil inteiro. O vídeo é o
atestado definitivo da miséria ética em que a Nação se deixou encarcerar.
Aquilo somos nós. O País foi sujeitado pelo egoísmo autoritário – o egoísmo
de quem manda. O único valor moral que esse autoritarismo reconhece é uma
noção bastante primária de “liberdade”: a liberdade dos outros não existe,
só o que importa é a “minha” liberdade. Os outros serão livres apenas para
concordar comigo e, caso se atrevam a discordar, serão declarados
“inimigos”:
maus brasileiros, impatriotas, mesmo que não tenham mais do que 6 ou 7 anos
de idade.
Essa fórmula de moralidade é bruta, estulta, opaca, rasa e inculta.
Trata-se
de um código de conduta prepotente e xucro, segundo o qual “eu sou livre
para não usar máscara e qualquer pessoa que use máscara na minha frente
está
atentando contra a minha liberdade”. Eis por que o presidente da República
recebe como um desaforo a presença de qualquer pessoa que vista uma máscara
na frente dele, mesmo quando essa pessoa é uma criança frágil.
Estamos, é claro, falando da liberdade dos que não admitem a liberdade do
outro – ou da liberdade daqueles que se armam para acabar com a liberdade
de
todos. Estamos falando da extrema direita antidemocrática, essa que no
Brasil responde pelo nome de bolsonarismo, que sequestrou a palavra
liberdade dos dicionários. Na cabeça desse pessoal, só eles têm o direito
de
falar em liberdade, pois só eles defendem a liberdade. “Eu sou livre para
não usar máscara”, grita um. “Eu sou livre para não tomar a vacina”,
secunda
o bajulador. Não lhes ocorre que a questão possa ter outras dimensões. Eles
não dispõem de aparato cognitivo para tanto. Basta ver e ouvir o presidente
da República, que não alcança nenhuma outra dimensão além da encerrada no
individualismo mais torpe.
Não ocorre a nenhum deles que a liberdade do brucutu que repudia a máscara
não pode valer mais que o direito do outro de não ser contaminado. Eles não
enxergam o sentido do respeito pela outra pessoa. Não conseguem
compreender.
Não percebem que, se quisermos viver em sociedade, a liberdade de um
indivíduo – digamos, a liberdade de ser estúpido – não pode ser posta acima
da liberdade que os outros têm de se proteger contra a pandemia. Não
entendem que a liberdade individual não inclui o direito de oferecer água
envenenada para os semelhantes, assim como não inclui o direito de sair por
aí aspergindo coronavírus sobre o rosto de crianças indefesas.
No fundo, eles não divisam o sentido da palavra liberdade além da fumaça da
pólvora. Não obstante, são eles que nos governam, arrancando de nós o pouco
que temos de proteção. Que façam isso em nome da liberdade é apenas mais um
capítulo da nossa tragédia imerecida.
Segundo esse jeito de pensar – que, melhor dizendo, é um jeito de não
pensar, pois, se pensasse, não teria o jeito hostil que tem –, a liberdade
de um começa onde termina a liberdade do outro, e isso é tudo. Segundo esse
credo (cruz, credo), só é livre quem agride e confronta a liberdade do
outro – e estamos conversados. Nisso consiste o primarismo atroz desse tal
jeito de (não) pensar, segundo o qual o exercício da liberdade é uma guerra
sangrenta de hordas contra hordas.
No entanto, se quisermos ter democracia, precisamos pensar além disso, ou
não seremos capazes de compreender que a minha liberdade começa não onde a
liberdade do outro termina, mas justamente onde a liberdade do outro também
começa (salve, Cornelius Castoriadis). Eu só sou livre de verdade, livre
além das minhas estreitezas individualistas, se o outro também for livre,
na
mesmíssima medida em que eu só sou saudável se este outro, ao meu lado, ou
aquele outro, distante de mim, forem, eles também, saudáveis. Eu só sou
livre, no fim das contas, se o mundo for livre junto comigo. A mísera
dimensão individualista não dá conta da grandeza da liberdade. Aliás, o
individualismo não dá conta nem mesmo de entender que, contra essa
pandemia,
não existe imunização individual; a imunização individual só tem valor
porque realiza a imunização coletiva, que é o único patamar sanitário
realmente seguro.
Se quisermos ter democracia, precisamos saber que uma sociedade não é um
rebanho de engorda num pasto aberto à custa de desmatamento. Só sou livre
se
me libertar da ignorância. Eu só sou livre se souber que, como autoridade
pública, não tenho o direito de remover uma só peça dos trajes de uma criança.
(de Eugênio Bucci, no Estadão de 1º/07/21)
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