São Roque é a cidade do vinho, Franca é a do calçado, ok... mas quem sabe qual é a cidade do livro? Entre Botucatu e Bauru está essa jóia. O que?, dirão, eu disse, quando vi essa matéria AQUI, como pode Lençóis Paulista pretender um epíteto tão nobre, de tanta responsabilidade, ser a cidade do livro? Um dia vou conferir... E esse dia chegou. Para arrumar as ideias depois de um 2024 agitado, por que não na... cidade do livro? Passo 3 dias lá e aproveito pra checar se essa hipótese (o sonho) que virou tese (decreto municipal) transformou a teoria em prática. Chequei, gente: transformou. Lençóis Paulista faz jus ao título.
Claro que fui com ganas de desmistificar, cheguei num Domingo e me armei para atacar a cidadela da biblioteca logo na 2ª-feira cedo. Porém ao ser recebido com um sorriso pela bibliotecária Silviane e equipe, me desarmei na hora. Espaço de paz na Biblioteca Municipal Orígenes Lessa. Simpática, organizada, bem iluminada, que abre simplesmente das 8 às 21h! E aos Sábados das 8 às 17h. Fala sério, ali não tem miséria com horário não! E que acervo! São 160 mil livros, contra uma população de 70 mil pessoas, uma das razões de ganhar o título: a cidade tem mais livros do que moradores. Mas isso não é nada, porque são OS LIVROS. Em síntese: por volta de 1963 o escritor Orígenes Lessa, nativo da cidade e membro da Academia Brasileira de Letras, foi convidado pelo fundador da biblioteca, o morador e literato Zanderlite Verçosa, a fazer campanhas pelo crescimento da mesma. Publicitário que também era (criou a marca Kibom, entre outras), Orígenes arregaçou as mangas e inventou caravanas de escritores até a cidade, para que fizessem doações, e os que doassem mais livros dariam nome às avenidas, ruas e travessas, conforme a quantidade de livros doados. Pronto! Você preferiria ter seu nome numa viela ou numa avenida? Resultado: Jorge Amado, Manuel Bandeira, Drummond, Raquel de Queiroz, Paulo Ronai, e outros, são nomes de logradouros em um bairro. Um alinhamento de astros no céu e na terra agraciou a cidade, e a biblioteca foi crescendo... A cidade não tem sebos, porque os moradores doam livros para a B.M. Orígenes Lessa.
A seção de livros autografados no andar superior é enorme. Volumes bem conservados, embalados em capa transparente que protege e dá brilho, um primor. Mas pensa que é só? O melhor (ou mais nobre) está do outro lado da rua: o Espaço Cultural Cidade do Livro. Um casarão ampliado para receber a biblioteca infantil e a área de conservação e restauro dos livros antigos que chegam, e ainda acondicionar, como devido cuidado, as obras raras mais importantes, além de revistas de época e jornais antigos. Para não ser um "depósito de livros", os funcionários fazem uma triagem atenta, e os livros repetidos são distribuídos por 2 ramais da biblioteca na cidade, e por sete "geladeirotecas" espalhadas pelos bairros. Visitei duas geladeirotecas, abri e estavam bem abastecidas, cheias da cerveja que a população da cidade gosta: livros. Salve os ébrios de Lençóis!
O fardão acadêmico do "imortal" José Mindlin, o maior bibliófilo brasileiro, exposto no espaço cultural, mostra a consideração que foi dada a esse empreendimento. Passei dois dias mergulhado no acervo, pedi no balcão livros difíceis de encontrar por aí, e logo me foram entregues... Em visita guiada conheci o belo trabalho feito pela funcionária Inês e equipe, no trato às obras danificadas pelos anos de uso (ou abandono), que chegam ali pedindo socorro, e encontram.
Lençóis Paulista é cidade do livro por decreto municipal. Tramita em Brasília um projeto de transformá-la em cidade do livro nacional. Aí, se cidades maiores ficarem melindradas com a pretensão da cidadezinha do interior, olha, vão ter que apresentar coisas bem consistentes para "roubar" esse título de Lençóis Paulista. Mas para tudo isso permanecer, é preciso contínuos investimentos em equipamentos, softwares, móveis, projetos de divulgação e principalmente recursos humanos. Fica a torcida para que os gestores municipais sigam incentivando essa proposta, trazendo pra cidade turistas interessados em livros. O mundo dos livros vive atacado por alienígenas de todos os lados. Amantes de livros, somos minoria indefesa, tadinhos de nós... E viva Lençóis Paulista!