Esse outro vírus terrível - as fake news - também é destruidor: penetra nas mentes e desarranja o entendimento, embaralha a visão das coisas, impede o diálogo em bases honestas. Pedro Doria mostra como as fake news funcionam hoje no Brasil, em um artigo muito feliz, que colo abaixo, para quem não conseguir abrir aqui.
A Terrível Distopia de Bolsonaro.
Existe um Brasil paralelo lá fora. Nele, não existem os muitos estudos
científicos que vêm dizendo, nas últimas semanas, que a cloroquina não ajuda no
combate ao novo coronavírus. O número de mortes este ano em nada difere dos
anteriores. Há caixões sendo enterrados com pedras dentro. As pessoas não morrem
de Covid-19, e sim de outras doenças, mas médicos desejosos de inflar os números
fraudam as certidões de óbito. E, claro, o Brasil parou por ordem de
governadores neuróticos, uma conspiração que inclui gente eleita da
centro-direita à esquerda. O fato de que toda a Europa menos a Suécia parou, de
que todas as Américas pararam, assim como um bom naco da Ásia, sequer registra.
Em geral, damos a este fenômeno um nome: fake news. E é isso mesmo. Mas é hora
de incluirmos um segundo anglicismo no debate público: gaslighting. Porque as
notícias falsas servem a um projeto maior e mostram como a internet opera para
ajudar a sustentar a popularidade do presidente Jair Bolsonaro.
Que fique claro: este Brasil paralelo inteiro não é real. É falso, mas é
inventado com os requintes daqueles escritores tipo J. R. R. Tolkien, George R.
R. Martin ou J. K. Rowling. É isso que está no Senhor dos Anéis, em Game of
Thrones ou Harry Potter: a criação de mundos inteiros, com suas próprias
histórias internas, para romances de fantasia. Assim, o país dos caixões
enterrados com pedras é o mesmo onde uma conspiração marxista tomou as rédeas
das artes, universidades e redações. O país em que governadores por algum motivo
desconhecido decidem parar propositalmente a economia é o mesmo em que algo
chamado “ideologia de gênero” tem por objetivo sexualizar cedo crianças e,
sempre que possível, leva-las à homossexualidade.
Cada peça de informação dessas é uma fake news. Mas o conjunto forma um
universo inteiro que tem sua lógica interna e apresenta uma visão de mundo. Isto
é gaslighting. O termo vem de uma peça importante do Modernismo inglês, Gas
Light, escrita em 1938 pelo dramaturgo Patrick Hamilton. No cinema, teve como
atriz Ingrid Bergman. A história tem no centro um casal em que o marido manipula
psicologicamente sua mulher até que ela começa a duvidar de sua própria memória
e percepção.
Como estratégia política de comunicação, gaslighting é a mesma coisa. É a
criação de um universo paralelo que, repetido consistentemente, passa a se
tornar crível para alguns. Mas o processo não se dá apenas pela criação destas
versões, ela inclui também uma técnica de ação que ocorre via redes sociais. Não
é complicada: uma pessoa conhecida, com muitos seguidores e que defenda um ponto
de vista, é desafiada com um argumento fantasioso. Não é raro que responda com
desorientação. Porque não basta um contra-argumento. É preciso questionar toda a
premissa que sustenta o desafio, é preciso provar que aquele mundo não existe.
Porque esta pessoa tem muitos seguidores, aquele diálogo vai ganhando
audiência.
Este Brasil paralelo vem sendo construído pelo escritor Olavo de Carvalho e
seus seguidores há bem mais de uma década. Com a emergência das redes sociais,
ganhou dinâmica e volume. E quando Jair Bolsonaro cita em suas lives ou comenta
nas entrevistas à porta do Alvorada alguma destas histórias, ele só as torna
mais plausíveis. Afinal, trata-se do presidente da República. O problema é o
seguinte: continua sendo tudo mentira.
O Brasil paralelo não existe. Este é um
dos problemas deste governo. Ele trabalha na mentira. E a arquitetura de
comunicação baseada em redes sociais facilita a construção desta obra
fictícia. Que, com o coronavírus, se tornou uma distopia terrível.
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imagem: blogs.correiobraziliense.com.br |